Tinha a pele fresca e rosada e as tranças loiras baloiçavam, quando se mexia. Tinha pouco mais do que seis palmos de altura e as mãos pequenas, delicadas. Tinha o ar de uma criança saudável e feliz, mas eram os olhos (os olhos!) que desfaziam a ilusão, como um mágico que revela os seus truques. Eram os olhos que pareciam um poço, negros e fundos, a queimar-me a pele como gelo e a dizer-me “eu não sou uma criança qualquer”.
Nunca tinha companhia. Quando eu chegava, ela estava sempre no mesmo lugar, os joelhos apoiados na cadeira para chegar à mesa, debruçada sobre uma folha. Mal me via aproximar, pegava nos lápis e nas folhas e chegava-se ao canto da sala, observando-me com os olhos cheios de raiva. Sempre respeitei o seu distanciamento, porque também não sentia vontade de me aproximar dela. Até que, um dia, vacilei.
Nesse dia, afastou-se de mim como um gato assanhado, como sempre, mas os olhos negros estavam menos duros, mais doces. Tinha um grande hematoma no rosto. Aproximei-me.
- Quem te fez isso? - apontei a mancha roxa que ia do canto do olho esquerdo à aba do nariz.
Os olhos dela faiscaram. Estendeu-me a folha que segurava contra o peito. Com lápis de carvão, desenhara, em linhas demasiado toscas, até para uma criança, uma roda de elementos compostos por pauzinhos com uma bola no topo. Levantei os olhos.
- É uma roda com crianças. - cuspiu, a saliva a pender-lhe do lábio rosado, as bochechas vermelhas da frustração por eu não ter entendido o que me queria dizer.
- São crianças, claro que sim. - abanei a cabeça enquanto tentava esconder um sorriso - São os teus amigos?
Uma luz acendeu-se dentro dela. Os olhos, outrora negros, duros, adquiriram uma suave tonalidade esverdeada. Os músculos do rosto relaxaram e quase esboçou um sorriso.
- Não, são as crianças que vivem debaixo da minha cama.