Antes que tirem as vossas rosas do bolso e as vossas frases feitas do dicionário de lugares-comuns, deixem que vos avise: aqui não há espaço para hipocrisias. Se o melhor que têm para oferecer a uma mulher é uma caixa de chocolates e uma piada rançosa sobre não existir o dia do homem, façam uso do vosso direito e saiam da página antes de ler as próximas linhas.
A disparidade salarial ainda é real: em média, as mulheres continuam a ganhar menos 20% do que os homens por trabalho de igual valor.
Para os que ficaram, peço desculpa pelo tom sombrio da missiva. Mas os dias que correm têm pouco de cor de rosa. Sim, falta o glitter e as purpurinas. Afinal, se estamos todos a celebrar a força e a resiliência feminina, porque é que haveríamos de nos contentar com o pouco e o banal? Apesar de a data surgir pintada em tons de rosa nas celebrações das grandes superfícies, o Dia da Mulher é muito mais do que uma imagem de uma flor acompanhada de palavras vazias.
A nível mundial, as mulheres ocupam apenas cerca de 26% dos lugares parlamentares, o que faz com que ainda seja mais fácil encontrar unicórnios cor-de-rosa do que uma bancada equilibrada de género.
Se não escrevermos sobre nós próprias, alguém há de escrever por nós, provavelmente numa legenda de Instagram com meia dúzia de hashtags recicladas. Por escrever, ficam as linhas que denunciam as desigualdades, os maus-tratos, a violência, a invisibilidade.
A educação não é a prioridade: em muitos países, as raparigas ainda têm dificuldade em aceder à escola, levando a altas taxas de analfabetismo feminino.
O Dia da Mulher está presente em cada conversa séria que evitamos, em cada duelo com o machismo travestido de “piada inofensiva”, em cada beco escuro que percorremos com o telemóvel nas mãos e o coração na boca. Está também na forma como, muitas vezes, desconversamos para não ferir susceptibilidades; na reunião em que nos interrompem antes de terminarmos uma frase; na pressão velada para sorrir, como se fossemos personagens secundárias a animar o cenário.
Estima-se que cerca de 1 em cada 3 mulheres experiencie violência física ou sexual ao longo da vida, habitualmente por parte de um parceiro. É um fenómeno transversal a culturas, classes sociais e níveis de escolaridade.

Por isso, caros leitores que ainda estão aqui, este texto serve para recordar que, aqui, neste retângulo plantado à beira mar, e no resto do mundo, assim mesmo, com m minúsculo (porque um mundo que ainda aprisiona a mulher não merece ter letra grande), ainda há tanto por fazer.
As mulheres continuam a assumir a maior parte das tarefas domésticas e de cuidados familiares. Basicamente, são gestoras de múltiplas tarefas, mas o título não aparece na porta do escritório.
E, no final de contas, se ainda houver mesmo quem precise de um lembrete, aqui fica: não se trata apenas de um dia, mas de todos os dias em que decidimos não baixar os braços. Em que passamos à frente das flores murchas e das palavras ocas, para reivindicar o nosso lugar à mesa. Um brinde a quem lê estes parágrafos e encontra ecos das suas próprias batalhas – é nessa partilha que mora a verdadeira força.
Em muitos países, as mulheres ainda não podem exercer livremente certas profissões, abrir contas bancárias sem autorização ou circular sem restrições.
Em suma, o Dia da Mulher não é um quadradinho no calendário rodeado de glitter e boas intenções. É antes um lembrete de que ainda há desigualdades para derrubar e vozes para fazer ouvir. Não se trata de oferecer flores para disfarçar muralhas que ainda nos separam do que deveria ser um direito básico: igualdade, simples e clara.
20 países possuem enquadramentos legais onde um homem pode evitar um processo criminal caso se case com a mulher ou menina que violou. 43 países não possuem legislação que condene a violação no casamento.

O brinde, afinal, não é às “heroínas” nem às “guerreiras” – termos que nos colocam num ringue perpétuo de combates que não escolhemos. O brinde é a todas as que, dia após dia, enfrentam sistemas teimosamente injustos, a quem reclama espaço sem pedir autorização e a quem persiste em existir sem precisar de rosas nem de aplausos vazios. E sem coroas de flores ou confettis, vamos continuar, de cabeça erguida, a escrever a nossa própria narrativa.
Foto de capa de Deon Black na Unsplash
Que maravilha de texto <3
Muito obrigada por este post de resumo!
Também gosto de lembrar que os direitos não são garantias e que se pode voltar para trás. É preciso sim continuar a falar deste dia para que o passo seja sempre para frente, e não para trás. No caso mais extremo o Afeganistão, em que as raparigas não podem ir à escola e as mulheres não podem trabalhar, quando em 1919 as mulheres ganharam o direito a votar no mesmo país. É mesmo preciso continuar a caminhar, porque o progresso também não é uma linha recta a subir.