Dantes, a vida era simples. Se queríamos uma resposta, apanhávamos o autocarro, íamos à biblioteca e consultávamos uma enciclopédia volumosa que cheirava a mofo e pesava tanto como as nossas mochilas. Se precisávamos de direções, confiávamos no velhote que estava sentado no banco do jardim que, com uma confiança inabalável, nos indicava um caminho que invariavelmente nos fazia dar três voltas ao mesmo quarteirão e entrar numa rua sem saída. E se queríamos escrever qualquer coisa, sentávamo-nos durante horas, a contemplar o vazio, enquanto esperávamos que as musas (ou o desespero) fizessem o seu trabalho.
Agora, tudo mudou.
Hoje, basta perguntar a uma IA e ela responde num piscar de olhos. E isso, aparentemente, é um problema.
O medo é compreensível. As máquinas já começaram a escrever artigos, a pintar quadros, a compor músicas – até a sugerir descrições para fotos no Instagram. E, pior do que isso, fazem-no sem hashtags #gratidão e sem precisar de três cafés e de um surto de insegurança antes de clicar em "publicar". Uma afronta.
Afinal, se há coisa que distingue os humanos é a capacidade de complicar o que é simples.
A postura correta, claro, seria recusar qualquer envolvimento com estas máquinas que querem "pensar" por nós. Só que há um problema: a IA (já) está em tudo o que mexemos.
As sugestões de séries da Netflix? IA. O algoritmo que decide que vídeos nos vão prender no Tik Tok por horas? IA. O corretor ortográfico que evita que enviemos emails com erros humilhantes? IA. O GPS que nos salva de ir parar à Amadora quando queremos chegar ao Cacém? IA.
E o mais irónico? Até quem reclama da IA já depende dela sem notar. O indignado que escreve um longo post no LinkedIn sobre como a tecnologia está a arruinar a criatividade? O próprio feed dele foi selecionado por um algoritmo. O escritor que se queixa de que a IA nunca será capaz de criar histórias com alma? Provavelmente, a Amazon já lhe sugeriu o próximo livro com base em padrões de leitura gerados... pela IA. E - arrisco dizer - já leu livros escritos por IA sem perceber.
O problema nunca foi a inteligência artificial. O problema é que ela nos faz questionar até que ponto queremos que o mundo seja mais fácil, mais rápido e mais previsível. Queremos continuar a ter o trabalho manual de procurar um bom filme ou queremos que um algoritmo nos conheça tão bem que nos diga exatamente o que vamos gostar? Queremos decidir cada palavra de um texto ou preferimos uma ajudinha discreta que torne tudo mais fluido?
Dizem-me que não devemos confiar nela, mas eu vejo-me a usá-la para fazer o plano de receitas da semana, para escrever emails formais em Inglês sem soar ao Zezé Camarinha ou até para resumir uma TEDTalk que, claramente, não tenho tempo para ver.
O passado era melhor?
Olhamos para trás e sentimos saudades do tempo em que as coisas davam trabalho. Como se procurar em vinte enciclopédias e ficar com uma crise de alergias fosse melhor do que pesquisar online, como se ler um mapa fosse uma coisa fantástica e não um exercício desnecessário de frustração. A nostalgia é um filtro enganador.
Queremos que o mundo avance, mas à nossa maneira. Queremos progresso, mas sem tocar naquilo que nos dá uma sensação de identidade. Queremos tecnologia, desde que nos continue a permitir sentir especiais.
Mas a verdade é que a IA não veio roubar a nossa humanidade. Veio expô-la. A necessidade de nos compararmos, o medo de sermos substituídos, a ilusão de que há mérito no sofrimento criativo.
E enquanto discutimos se a IA é uma ameaça ou uma ferramenta, pedimos ao ChatGPT para resumir um artigo que não temos paciência para ler.
Como ilustrador e designer condeno a AI por num futuro muito próximo, dizimar uma grande parte do mercado de trabalho, na minha e em outras áreas. No entanto, recorro a ela muitas vezes para rever, principalmente, o que escrevo em inglês. A vida morderna faz de nós uns hipócritas.
Excelente ponto de vista! Eu gosto de usar a tecnologia como uma ferramenta, mas sei que ela ameaça a forma como vivemos até aqui.
O que não me esqueço é que a tecnologia não apaga o facto de sermos animais sociais que precisa de viver na sua tribo / comunidades. Por isso, era bom ter um balanço: usar a tecnologia para despachar as tarefas chatas do dia-a-dia, para termos tempo para ficar no jardim a falar com quem mais gostamos, com uma mesa redonda cheia de queijos.