Há dias, cruzei-me com uma cena da novela Vale Tudo que ficou cravada num lugar profundo de mim mesma. Na cena, uma mulher de meia idade, deitada numa cama de hospital, conversa com o filho e admite que, apesar de o amar, não nasceu para ser mãe. Não há raiva, nem drama, só a serenidade crua de quem desmente, com uma frase simples, uma mentira antiga: a de que a maternidade é um instinto.
Sou mãe. Reconheço o cheiro da culpa ao longe. O cansaço que se cola aos ossos. A sensação de estar sempre a falhar, de não estar inteira em lado nenhum — nem no trabalho, nem em casa, nem dentro de mim. Nunca deixei de amar os meus filhos, mas, nestes 9 anos de maternidade, pensei muitas vezes, com a culpa a fazer doer o estômago: eu não nasci para ser mãe.
Diz a personagem que “ser mãe exige muita submissão, muita abnegação”. É neste momento que me caem as lágrimas, a pele arrepia-se como se quisesse sair do meu corpo. Porque eu sei exactamente do que ela fala. A maternidade como espaço onde nos apagamos. Um papel atribuído antes de termos sequer consciência do enredo. Uma função que exige que desapareçamos aos poucos, sempre em nome de um bem maior.
Não me interpretem mal: não se trata de ingratidão. Há amor. Há alegria. Há aquele abraço ao fim do dia que recompõe tudo. Mas há também um cansaço de existir apenas em função de alguém. De estar sempre a oferecer presença, colo, contenção, enquanto se vai perdendo a forma do próprio corpo, da própria voz.
Durante muito tempo pensei que havia em mim uma falha. Que era um defeito custar-me tanto ser mãe. Que a exaustão, o desespero, o desconforto vinham de mim. Agora percebo que talvez o problema esteja nas mentiras que nos são ditas, a ideia de que a maternidade devia bastar, de que, uma mãe, depois de parir, deixa de querer ser uma mulher.
Como vos dizia, são quase nove anos neste papel. Tive muitas alegrias, durante estes nove anos, e sei que, com o crescimento dos meus filhos, virão muitas outras. Mas isso não significa que eu não veja as tristezas e as angústias. Que não reconheça, nos intervalos do riso, o peso da solidão, o esvaziamento de quem vai deixando partes de si pelo caminho.
Talvez o mais revolucionário que uma mulher possa fazer seja admitir isso sem vergonha. Poder dizer: amo profundamente os meus filhos e, ainda assim, não nasci para esta entrega total que se espera de mim. Dizer isto em público ainda é um acto de traição. Traição à figura da mãe, amor incondicional, doçura que não cansa.
“Talvez eu até tenha nascido para ser pai”, diz a personagem, a determinada altura. O que ela diz não é que as mulheres têm mais talento para cuidar do que os pais. É que a sociedade permite-lhes tomar esse papel, por querer, sem se dissolverem. Dá-lhes a liberdade de serem pais e homens, profissionais, indivíduos com tempo para si. Às mães, ainda hoje, pede-se um sacrifício mais fundo: o de deixar de existir.
A cena da novela acaba e eu fico ali, a olhar para o ecrã escuro. A sentir que, por um momento, alguém disse por mim aquilo que nunca consegui explicar. Demoro um pouco a identificar o que sinto, até que percebo: é alívio. De saber que podemos dizer: eu amo, mas não nasci para isto, e ainda assim continuar a ser mãe. Não por instinto, nem por vocação, mas por responsabilidade. Porque assumi esse papel, e cumpro-o todos os dias.
Não preciso que a maternidade me defina para ser uma boa mãe. Nem preciso fingir plenitude para amar os meus filhos. O que preciso (o que tantas de nós precisamos) é de espaço para existir também fora desse papel, sem que a maternidade me retire automaticamente o direito a ser uma mulher completa.
E quando, um dia, os meus filhos lerem o que escrevi, espero que compreendam que amar não é anular-se e que recusar a ideia de uma maternidade sacrificada é, também, uma forma de mudar o mundo onde eles crescem.
Foto de capa de Allison Saeng na Unsplash
Sou mãe solo há quase 10 anos e penso isso muitas vezes.
Tenho muitos meses em que não sei como sobrevivo e aguento sem tempo para fazer as coisas que gosto e me são tão importantes.
Esta vida das 9h às 18h quase escrava e depois todas as tarefas que ser mãe me exige deixam-me sem neurónios para mim.
Adoro ser mãe ao fim de semana como acontece nas férias do verão. Em que alguém cuide de segunda à sexta e eu só existo ali para a parte boa! Quase como muitos pais.
Este país não foi feito para quem quer ser mulher e mãe.
Partilho muito dos teus sentimentos e palavras.
Não somos piores progenitores por assumirmos que a parentalidade não é a nossa vocação. Falo do alto do privilégio de ser homem, branco, cis e pai neste mundo estruturado para o poder patriarcal. Não imagino a carga mental sempre excessiva, o peso da "responsabilidade social" que nos vendem como sendo a verdadeira maternidade. Acho repugnante que assim seja e, todavia, assim o é. Acho que muito do que as mulheres sentem, para além de ser uma pressão sistémica, é culpa nossa, dos homens, sempre ursinhos desajeitados que se tentam desculpar pela falta de noção do que é cuidar. Foi precisa muita coragem para escreveres o que escreveste e não tenho dúvidas que a esmagadora maioria das mulheres concordará contigo. As que são mães ou pensam vir a ser. Deixo-te um abraço de um pai, que mesmo tendo o privilégio todo que tem, também se sente exausto e pouco talhado para a tarefa hercúlea que é criar outro ser humano. Não imagino fazê-lo sendo mulher.